Na tragédia do Haiti concorrem dois fenômenos convergentes e diferentes. Por uma parte, a situação da ilha caribenha em uma zona sísmica, com frequentes terremotos e maremotos, exposta também a furacões e ciclones, em uma das partes mais vulneráveis do planeta. Por outra, a agressiva mão do ser humano, que tem desflorestado o Haiti, superexplorado suas reservas naturais e construído povoados e cidades carentes do mínimo de segurança.
As condições extremamente precárias em que os colonizadores deixaram o país, a tradição racista e escravista, a corrupção generalizada, a ditadura de governos exploradores, como os Duvalier, e a injusta distribuição dos recursos aumentaram as doenças da ilha. Arruinaram tudo, incluindo a zona histórica e os órgãos estatais, mas se preservou o moderno bairro rico de "Pétion Ville", em Porto Príncipe, como também a vizinha e menos desafortunada República Dominicana.
A partir destes dados, a pergunta religiosa "onde está Deus" não é nem pode ser a primeira. O Haiti exemplifica o que já ocorreu com o tsunami da Indonésia e as fomes subsaarianas.
Sem esta ordem de coisas, poderia ter sido evitada a repercussão da catástrofe ou teria sido muito menor. Mas os habitantes do Haiti são tão pobres que nem sequer têm capacidade para receber e repartir a ajuda que lhes chega. Quem tem a culpa? A atual ordem internacional que só pode apoiar-se com base no poder econômico, político e militar dos países ricos, e a persistente corrupção das elites dirigentes do país.
E Deus? Seguimos buscando o Deus relojoeiro de Newton, que ajusta a maquinaria do universo para regular suas disfuncionalidades. Pedimos milagres naturais, que Deus envie as chuvas ou as pare, detenha os tufões, faça prodígios. Isso era também o que pedia o povo a Jesus, o desejo com o qual o espírito do mal lhe tentava (poder, prestígio e dinheiro), e o sonho dos discípulos (um messias milagreiro).
Dois mil anos depois, seguimos buscando um Deus-providência ao nosso serviço, um superpai protetor e um ser onipotente que nos proteja da natureza. Mas Deus não interveio para evitar o Gólgota, nem em Auschwitz, nem evitou pestes, fomes e outros desastres.
A ciência formula as leis da natureza e explica as causas dos desastres, facilitando o progresso e o avanço no controle dela. Deus não tem ciúmes do ser humano, imagem sua, mas capacita a pessoa para ser criadora e gerar vida. Deu à humanidade uma responsabilidade no mundo com a condição de que todos os seres humanos e a própria natureza participassem equitativamente das riquezas do universo. Defende o pobre e o oprimido, e abençoa os que trabalham pela paz e justiça, valores do Reino de Deus.
Deus não é neutro, está no Haiti nas vítimas e nas pessoas que trabalham ali solidariamente, identifica-se com as vítimas e faz delas o critério do julgamento divino (Mt 25,31-46). Ninguém tem o direito de falar em seu nome, só elas e quem compartilha seus sofrimentos. Mas todos nós podemos e devemos fazer-nos presentes no Haiti, atender às necessidades urgentes dos haitianos e colaborar na sua reconstrução. Mas isso não basta. Dentro de poucos meses, Haiti será uma mera lembrança, exceto para os que continuam ali.
A grande tragédia do século XXI é a de uma humanidade que tem recursos suficientes para acabar com a fome e mitigar as catástrofes naturais, mas prefere empregá-los em armamento, para defender-se dos pobres; em policiais, para evitar que os imigrantes cheguem a nossas ilhas de riqueza; e nos esbanjamentos consumistas de uma minoria de países. Do mal do Haiti, somos todos responsáveis, especialmente os países mais ricos, e a solidariedade não pode ficar em um momento pontual, mesmo que seja necessária, ainda que exija outra forma de vida.
O Haiti personifica hoje os povos crucificados, e a única resposta válida é comprometer-nos para que não haja mais Haitis assolados, nem Palestinas massacradas, como também nenhum Auschwitz nem Hiroshima. Todos nós temos que mudar, e a referência ao Deus de Jesus há de ser o grande incentivo de justiça e solidariedade para os que nós chamamos cristãos.
Este documento é assinado pelos seguintes membros da Associação João XXIII:
30/1/2010