sábado, 30 de janeiro de 2010

Deus no Haiti?

A tragédia do Haiti suscita diversas perguntas religiosas. A ciência dá respostas sobre por que e como sucedem os fenômenos, mas, como dizia Wittgenstein, uma vez alcançadas as soluções científicas, permanecem as perguntas de sentido e significado, que fogem do âmbito científico.
A nota é da Associação de Teólogos João XXIII,  com sede em Madrid, Espanha e publicada pelo sítio Religión Digital, 28-01-2010. A tradução é de Vanessa Alves.

Na tragédia do Haiti concorrem dois fenômenos convergentes e diferentes. Por uma parte, a situação da ilha caribenha em uma zona sísmica, com frequentes terremotos e maremotos, exposta também a furacões e ciclones, em uma das partes mais vulneráveis do planeta. Por outra, a agressiva mão do ser humano, que tem desflorestado o Haiti, superexplorado suas reservas naturais e construído povoados e cidades carentes do mínimo de segurança.

As condições extremamente precárias em que os colonizadores deixaram o país, a tradição racista e escravista, a corrupção generalizada, a ditadura de governos exploradores, como os Duvalier, e a injusta distribuição dos recursos aumentaram as doenças da ilha. Arruinaram tudo, incluindo a zona histórica e os órgãos estatais, mas se preservou o moderno bairro rico de "Pétion Ville", em Porto Príncipe, como também a vizinha e menos desafortunada República Dominicana.

A partir destes dados, a pergunta religiosa "onde está Deus" não é nem pode ser a primeira. O Haiti exemplifica o que já ocorreu com o tsunami da Indonésia e as fomes subsaarianas.
Há povos, nações e Estados que vivem na miséria, sem capacidade para defender-se das catástrofes naturais. A ordem internacional está montada sobre a concentração de riqueza em 20% da humanidade e o desamparo de boa parte desta.
Por si sós não podem sair de sua miséria, agravada por multinacionais que exaurem os recursos para obter grandes benefícios em pouco tempo, governos próprios corruptos e vendidos, e países ricos que protegem seus interesses e os de suas companhias no terceiro Mundo.

Sem esta ordem de coisas, poderia ter sido evitada a repercussão da catástrofe ou teria sido muito menor. Mas os habitantes do Haiti são tão pobres que nem sequer têm capacidade para receber e repartir a ajuda que lhes chega. Quem tem a culpa? A atual ordem internacional que só pode apoiar-se com base no poder econômico, político e militar dos países ricos, e a persistente corrupção das elites dirigentes do país.
E Deus? Seguimos buscando o Deus relojoeiro de Newton, que ajusta a maquinaria do universo para regular suas disfuncionalidades. Pedimos milagres naturais, que Deus envie as chuvas ou as pare, detenha os tufões, faça prodígios. Isso era também o que pedia o povo a Jesus, o desejo com o qual o espírito do mal lhe tentava (poder, prestígio e dinheiro), e o sonho dos discípulos (um messias milagreiro).

Dois mil anos depois, seguimos buscando um Deus-providência ao nosso serviço, um superpai protetor e um ser onipotente que nos proteja da natureza. Mas Deus não interveio para evitar o Gólgota, nem em Auschwitz, nem evitou pestes, fomes e outros desastres.
Achamos, com tudo, que o mal é também um mistério que encaixa dificilmente com a imagem de um Deus onipotente e misericordioso, sobretudo, quando se traduz em sofrimento dos pobres e dos inocentes.
A ciência formula as leis da natureza e explica as causas dos desastres, facilitando o progresso e o avanço no controle dela. Deus não tem ciúmes do ser humano, imagem sua, mas capacita a pessoa para ser criadora e gerar vida. Deu à humanidade uma responsabilidade no mundo com a condição de que todos os seres humanos e a própria natureza participassem equitativamente das riquezas do universo. Defende o pobre e o oprimido, e abençoa os que trabalham pela paz e justiça, valores do Reino de Deus.

Deus não é neutro, está no Haiti nas vítimas e nas pessoas que trabalham ali solidariamente, identifica-se com as vítimas e faz delas o critério do julgamento divino (Mt 25,31-46). Ninguém tem o direito de falar em seu nome, só elas e quem compartilha seus sofrimentos. Mas todos nós podemos e devemos fazer-nos presentes no Haiti, atender às necessidades urgentes dos haitianos e colaborar na sua reconstrução. Mas isso não basta. Dentro de poucos meses, Haiti será uma mera lembrança, exceto para os que continuam ali.
A grande tragédia do século XXI é a de uma humanidade que tem recursos suficientes para acabar com a fome e mitigar as catástrofes naturais, mas prefere empregá-los em armamento, para defender-se dos pobres; em policiais, para evitar que os imigrantes cheguem a nossas ilhas de riqueza; e nos esbanjamentos consumistas de uma minoria de países. Do mal do Haiti, somos todos responsáveis, especialmente os países mais ricos, e a solidariedade não pode ficar em um momento pontual, mesmo que seja necessária, ainda que exija outra forma de vida.

O Haiti personifica hoje os povos crucificados, e a única resposta válida é comprometer-nos para que não haja mais Haitis assolados, nem Palestinas massacradas, como também nenhum Auschwitz nem Hiroshima. Todos nós temos que mudar, e a referência ao Deus de Jesus há de ser o grande incentivo de justiça e solidariedade para os que nós chamamos cristãos.

Este documento é assinado pelos seguintes membros da Associação João XXIII:
José Luis Andavert, Xavier Alegre, Juan Barreto, Fernando Bermúdez, José Manuel Bernal, Rafael Calonge, José María Castillo (vogal), José Centeno, Juan Antonio Estrada, Benjamín Forcano, Máximo García Ruiz (vogal), José Ignacio González Faus, Julio Lois, Francisco Margallo, Eduardo Malvado, Albert Moliner, Federico Pastor (presidente), Jesús Peláez, Victorino Pérez Prieto, Margarita Pintos, José Luis Quirós, Alfredo Tamayo Ayestarán (vice-presidente), Juan José Tamayo-Acosta (secretário-geral), Rufino Velasco, José Vico, Evaristo Villar, Juan Yzuel. 

30/1/2010
Fonte: IHU

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Deus está no Haiti?

Desde a perspectiva científica, o terremoto tem uma dupla explicação. Por um lado, uma zona sísmica, sempre ameaçada por terremotos e maremotos, que acontecem com frequência. Por outro, que se praticou um desflorestamento em massa no país, que contrasta com a superfície da República Dominicana, a outra parte da ilha.

Além disso, deu-se uma sobre-exploração do solo, um esgotamento dos recursos naturais, em parte por empresas que foram pão para hoje e fome para amanhã, e uma forte explosão demográfica sob governos corruptos e ditatoriais, como os Duvalier, cujo herdeiro gasta hoje sua fortuna na França.

A reportagem é de Juan A. Estrada, publicada no Diario de Sevilla, 23-01-2010. A tradução é de Vanessa Alves

Quando o terremoto chegou, quase tudo veio abaixo, incluindo o centro histórico e as instalações estatais. Mas o bairro rico e moderno de Pétion Ville, em Porto Príncipe, mal sofreu danos. É uma ilha segura, sólida e livre de desastre natural.

A conclusão é evidente: com outra política e governo, outra distribuição da riqueza e outro tipo de construções teria se amortecido muito a violência da natureza no país mais pobre da América.

Antes de se perguntar por Deus - Por que permite isso? - é preciso perguntar ao homem como consentimos que tantos seres humanos vivam na miséria, indefesos perante a natureza? A tragédia do Haiti é sequência do tsunami da Indonésia e virão muitos mais, porque três quartos da humanidade vivem na pobreza, sem meios para controlar a natureza. Temos os recursos técnicos e materiais para reduzir ao mínimo estes desastres, mas a distribuição internacional da riqueza os invalida.

E onde está Deus? Seguimos esperando milagres divinos que mudem o curso da natureza; apelamos à Providência para que intervenha nas catástrofes naturais; rezamos e pedimos prodígios e sinais. E Deus guarda silêncio e não atua como esperamos. Não aprendemos da história. Não parou a cruz no Gólgota; não interveio para evitar Auschwitz; não é o Deus relojoeiro de Newton, que ajusta o relógio natural de vez em quando; não modifica as leis da criação, descobertas pela ciência.

O homem e o universo são obras de um criador que respeita a liberdade humana e o dinamismo da natureza. Se buscamos ao Deus milagreiro, sempre à escuta dos desejos do homem, busquemos em outra religião, não na do Deus crucificado. É inconcebível que os cristãos sigam esperando intervenções prodigiosas, como em tempos de Jesus, sem assumir a maioridade do homem e a autonomia do universo, cujas leis conhecemos melhor e cada vez mais.

Por outro lado, encontraremos Deus, se o buscamos identificando-se com as vítimas e chamando aos homens de boa vontade à solidariedade e a justiça; se esperamos que Deus nos inquiete, nos provoque e nos incite a colaborar de mil maneiras para mitigar a dor no Haiti; se achamos que Deus não é neutro e que o contraste entre o grande mundo pobre e a minoria de países ricos clama ao céu.

É preciso ajudar Deus para que se faça presente no Haiti, porque necessita dos homens para que chegue aí o progresso e a justiça. Os mortos e refugiados da catástrofe têm fome de justiça, a das bem-aventuranças, e Deus necessita de testemunhas suas para fazer-se presente.

Ninguém pode falar em nome das vítimas sem experimentar seus sofrimentos nem padecer sua forma de vida, só fazer-nos presentes a eles. O protagonismo corresponde ao ser humano: Deus é autor da história, logo inspira, motiva e envia para a solidariedade e a justiça. O Deus cristão não é a divindade grega que sente ciúmes do homem e castiga Prometeu, mas o que se orgulha da capacidade para gerar vida com a ciência e o progresso, só exigindo que os recursos naturais se ponham a serviço de todos.

É preciso agir como "se Deus não existisse" e tudo dependesse de nós, universalizar a solidariedade e mudar as estruturas internacionais que condenam povos inteiros à miséria. A partir daí podemos esperar tudo de Deus e pedir-lhe que fortaleça, inspire e motive os que lutam por um mundo mais justo e solidário.

Dentro de poucos meses, o Haiti será uma mera lembrança, exceto para os que seguem ali, e teremos esquecido, como a Indonésia ou os famintos da África subsaariana. A grande tragédia do século XXI é a de uma humanidade que tem recursos para acabar com a fome e mitigar as catástrofes naturais, mas prefere empregá-los em armamento, para defender-se dos pobres; em policiais, para evitar que cheguem em nossas ilhas de riqueza e nos esbanjamentos consumistas de uma minoria de países.

Do mal do Haiti somos todos responsáveis, e a solidariedade não pode ficar no acontecimento pontual, mesmo que seja necessária, mas exige outra forma de vida.

Fonte: IHU