sábado, 13 de novembro de 2010

Predileção


Não saberemos o que foi e como foi, mas certamente há no início da missão de Jesus uma experiência fortíssima da predilecção do amor de Deus, como um filho maravilhado diante de um Pai, associada a uma experiência de crise interior, de confronto com uma missão que ainda não era clara e exigia um discernimento que conduzisse a escolhas e consequentes rupturas. Tudo isto está ligado ao baptismo de Jesus, nas margens do Jordão.

Os evangelistas são muito sóbrios a testemunharem isto, e ao mesmo tempo quase poéticos, como tem de ser para narrar experiências destas: “Jesus fez-se baptizar por João no Jordão. Enquanto saía da água viu o Céu aberto e o Espírito descendo sobre ele como uma pomba. E ouviu-se uma voz do Céu: “Tu és o meu filho muito amado, o meu encanto”. Imediatamente, o Espírito levou-o ao deserto onde passou quarenta dias, e era tentado pelo divisor. Vivia com as feras e os anjos o serviam”. (Mc 1, 9-13)

É aqui que tudo se torna verdadeiramente seu! Na experiência definitiva do Céu aberto, do olhar de Deus, do amor de predilecção que o gera no seu íntimo como filho e encanto de Deus, como consagrado pelo Espírito que não “passa” sobre ele mas “desce” para o habitar…

Mas também na experiência profunda e dolorosa dos quarenta dias, símbolo bíblico do deserto e da preparação para os grandes começos, na experiência da crise, da divisão interior, do sentir-se no meio de dois mundos com forças tão opostos, entre feras e anjos…

Só depois disto começa a sua missão… Jesus é um homem profundamente habitado por aquilo que transmite, experimentado no encanto que isso gera e no confronto que exige. E nada disto é um momento só, certamente. O relato desta experiência de predilecção e de crise feita por Jesus não é simplesmente a narração de um momento da sua vida, mas uma parábola que nos aproxima de uma dimensão sempre presente nele.

O Céu não se fechou mais! O grande anúncio de Jesus, a “tal” Boa Notícia, é isso mesmo: “Deus está próximo, o Seu Reino está aqui, o Céu está aberto, a Salvação está ao alcance de todos…” Porque era muito exigente a salvação pela Lei: uma salvação exigida pela própria virtude, um Céu longínquo ao qual se chegava à força de braços, um Deus difícil que se conquistava à custa de muita coisa que os mais próximos de Jesus, na maior parte das vezes, não tinham para dar… mas a Boa Notícia é que o Céu se abriu e Deus mesmo veio encontrar-se com o Seu povo, veio consolar e curar os Seus, fora das muralhas do Templo, das letras da Lei e das mãos puras dos que impõem tudo isso aos seus irmãos.
E a voz do Céu também não se calou mais! Jesus continuou a escutá-la toda a sua vida, continuou a fazer a experiência do amor encantado de Deus por si, sobretudo pela mediação dos pobres e simples do seu povo, os seus amigos. Era através deles que o Pai continuava a dizer-lhe ao Coração: “Tu és o meu filho amado… o meu encanto!” Era através deles, pela maneira como o acolhiam, como lhe davam o primeiro lugar à mesa das suas casas e nas suas vidas. A maneira como acolhiam a sua Notícia e confirmavam a Jesus que ela era Boa, a maneira como se deixavam libertar diante dos seus olhos e curar à sua passagem, este era o modo como faziam o Coração de Jesus exultar de gratidão pela permanente voz de Deus “Tu és o meu filho tão amado… tão amado… tão amado… tão amado… és o meu encanto! Encanto-me contigo… tão amado…”

O Céu abriu-se para não mais se fechar nem calar, e o Espírito não seguiu adiante deixando Jesus para trás ou algum dos seus. No convívio com os seus, Jesus experimentava tudo isto, e estando com eles às vezes nem conseguia segurar o Coração: “Nesse momento, Jesus exultou de alegria no seu íntimo movido pelo Espírito e disse: Eu Te bendigo, oh Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos grandes e sabedores e as revelaste aos simples! Sim, oh Pai, porque essa foi a tua vontade!” (Lc 10, 21)

Mas a totalidade desta experiência do Amor paternal de Deus como um amor de predilecção só a tocamos quando procuramos entrar no mistério do silêncio de Jesus. Não há sabedoria sem silêncio, nem maturidade, nem encanto que dure, nem fidelidade que se aguente.

Os evangelistas preocupam-se em testemunhar-nos este silêncio de Jesus, que umas vezes roubava horas ao sono para se afastar de casa enquanto os próprios discípulos dormiam, outras vezes mandava-os à frente dele para ficar a sós, e havia noites que ia para uma colina qualquer por ali perto e passava a noite em oração, a dizer-se e a receber-se do Pai.

E daqui não podemos passar muito mais… Espreitando estes momentos, chegando-nos perto, talvez o consigamos ouvir a dizer muitas vezes “Abba…” como depois ensinou aos seus. Falar-Lhe-ia do Reino, de si, dos seus amigos, dos tristes, dos pobres e dos doentes, dos seus discípulos, das mordeduras de alguns fariseus e doutores da Lei, das suas dúvidas e decisões…


Texto de:
Rui Santiago.