Leonardo Boff
Hoje se fala das muitas crises sob as quais padecemos: crise econômica,
crise energética, crise social, crise educacional, crise moral, crise
ecológica, crise espiritual etc. Se olharmos bem, verificamos que, na
verdade, todas as crise se encontram numa fundamental: a crise do tipo de
sociedade que criamos a partir dos últimos 400 anos. Esta crise é global
porque este tipo de sociedade se difundiu ou foi imposta praticamente no
globo inteiro.
Qual é o primeiro sinal visível que caracteriza este tipo de sociedade? É
que ela produz sempre pobreza e miséria de um lado e riqueza e acumulação do
outro. Este fenômeno se nota ao nível mundial. Aí há poucos paises ricos e
muitos paises pobres. Nota-se principalmente ao nível das nações: poucos
estratos beneficiados com grande abundância de bens de vida (comida, meios
de saúde, de moradia, de formação, de lazer) e grandes maiorias carentes do
que é essencial e decente para a vida. Mesmo nos paises chamados
industrializados do hemisfério norte, notamos bolsões de pobreza
(terceiromundializaçã o no primeiro mundo) como existem também setores
opulentos no terceiro mundo (uma primeiromundialização do terceiro mundo)
no meio de miséria generalizada.
Por que é assim? As críticas vão denunciar porquê.
l. Três críticas ao modelo de sociedade atual
Há três linhas de crítica ao modelo de sociedade atual. Gostaríamos de
enunciá-las rapidamente.
A primeira é feita pelos movimentos de libertação dos oprimidos. Ela diz: o
núcleo desta sociedade não está construído sobre a vida, o bem comum de
todos, a participação e a solidariedade entre os humanos. O eixo
estruturador está na economia. Ela é um conjunto de poderes e instrumentos
de criação de riqueza - e aqui vem a característica básica - mediante a
depredação da natureza e a exploração do seres humanos. A economia é a
economia do crescimento ilimitado, no tempo mais rápido possível, com o
mínimo de investimento e a máxima rentabilidade. Quem conseguir se manter
nesta dinâmica e obedecer a esta lógica, acumulará e será rico. Mas tudo
isso à custa de um permanente processo de exploração.
Portanto, a economia se orienta por um ideal de desenvolvimento que se
coloca entre dois infinitos: o dos recursos naturais pressupostamente
ilimitados e do futuro indefinidamente aberto para frente.
Para este tipo de economia do crescimento, a natureza é degradada a um
simples conjunto de "recursos naturais", ou à matéria prima em
disponibilidade dos interesses humanos. Os trabalhadores são considerados
como "recursos humanos" ou pior ainda "material humano" em função de uma
meta de produção. Como se depreende, a visão é instrumental e mecanicista:
pessoas, animais, plantas, minerais, enfim, todos os seres perdem sua
autonomia relativa e seu valor intrínseco. São reduzidos a meros meios para
um fim fixado subjetivamente pelo ser humano que se considera o centro e o
rei do universo, Este quer enriquecer e acumular bens para si.
Qual a crítica principal que se faz a esta linha? É constatar que esse
modelo não consegue criar riqueza sem ao mesmo tempo gerar pobreza; não é
capaz de gestar desenvolvimento econômico sem simultaneamente produzir
exploração social local e internacional. E ainda não é democrático, porque
monta um sistema político de controle e de domínio. Ou cria democracias de
elite (as nossas democracias liberais, representativas) ou democraturas
(democracias sob a tutela militar). Mas nunca se instaura uma democracia que
respeita a palavra democracia, quer dizer, a forma de organização social
assentada sobre as maiorias, forma que se articula ao redor do bem estar da
maioria, mediante a participação, que cria mais e mais níveis de igualdade e
o sentimento de solidariedade com o respeito das diferenças, que são vistas
como complementares. Desta crítica nasceram os movimentos dos oprimidos por
sua libertação, que vão desde a luta dos sem terra, sem teto até os
sindicatos bem organizados e combativos. Destarte nasceu uma cultura da
cidadania, da democracia, da participação, da solidariedade e da libertação.
Aqui lança suas raízes a teologia da libertação, a primeira síntese
teológica nascida no terceiro mundo (América Latina) com repercussões em
todas as Igrejas e nos centros metropolitanos de pensamento.
Postula-se um desenvolvimento que atenda as demandas de todos e não apenas
dos mais fortes.
A segunda linha crítica vem dos grupos pacificistas e da não-violência
ativa. Estes grupos notam que o tipo de sociedade de desenvolvimento
desigual produz muita violência. Violência social e injustiça societária,
por causa da própria desigualdade, violência a nível nacional e
internacional. Esta violência é conseqüência direta da dominação de paises
que detém poder tecno-científico sobre os outros mais atrasados. O conflito
generalizado tem mil rostos, dos quais os mais conhecidos são os conflitos
de classe, de etnias, de gênero e de religiões. O modelo vigente de
sociedade não favorece a solidariedade, mas a concorrência, não o diálogo e
o consenso, mas a luta de todos contra todos. Por isso, as potencialidades
humanas de sensibilidade pelo outro, de ternura pela vida, de colaboração
desinteressada são secundarizadas para dar lugar aos sentimentos menores da
exclusão e da vantagem pessoal ou classista. Para manter a coesão mínima de
uma sociedade desestabilizada internamente, se fazem necessários corpos
militares para controle e repressão. Ao nível mundial dos blocos (seja antes
socialistas e liberais e agora ricos e pobres, sul e norte) se cria o
complexo militar-industrial que incentiva a corrida armamentística e a
militarização de toda a existência. Dados recentes apontavam que 2/3 da
inteligentzia mundial trabalha em projetos militares. Mesmo depois do fim da
guerra fria, se aplicam na indústria da morte cerca de l-3 trilhões de
dólares ao ano; para a preservação do planeta terra, sequer l30 bilhões de
dólares.
Assim, surgiram movimentos pela paz e pela não-violência ativa. Postula-se
um modelo social que chegue à justiça, mediante a democracia social. A
violência militar e a guerra atômica, química e bacteriológica constituem
formas específicas de agressão global, capazes de produzir o ecocídio,
biocíodio e geocídio de vastas regiões do planeta.
O terceiro grupo de crítica nos interessa diretamente: são os movimentos
ecológicos. Eles constatam que o tipo de sociedade e de desenvolvimento que
ela se propõe, não produz riqueza sem ao mesmo tempo gerar degradação
ambiental. O que o sistema industrialista mais produz é lixo, rejeitos
tóxicos, escórias radioativas, contaminacão atmosférica, chuvas ácidas,
diminuição do ozônio, envenenamento da terra, das águas e do ar, numa
palavra, deteriorização da qualidade de vida. A fome da população, as
doenças, a falta de habitação, de educação e lazer, a ruptura dos laços
familiares e sociais são agressões ecológicas contra o ser mais complexo da
criação que é o ser humano, especialmente, o mais indefeso que é o pobre e
marginalizado.
Estas preocupações estão originando uma cultura ecológica, quer dizer, a
consciência coletiva da responsabilidade dos seres humanos pela
sobrevivência do planeta, das espécies animais e vegetais, responsabilidade
na superação da miséria e da pobreza social no mundo, pelas relações que
devem permitir vida para todos e um bem estar dos seres humanos e de todos
os seres da natureza.
Importa hoje articular todas estas frentes críticas ao sistema imperante.
Urge secundar o surgimento de um paradigma novo de sociedade que não repita
os equívocos e erros do velho e integre mais humanamente os seres na
sociedade. E estabeleça relações mais benevolentes para com o meio-ambiente.
2. Somos parte de um imenso equilíbrio: ecologia social
Queremos agora aprofundar a terceira corrente, a ecológica, na sua dimensão
social. O grande desafio vem da pobreza e da miséria. Esses são nossos
principais problemas ecológicos e não o mico-leão dourado, o urso panda da
China e as baleias do Atlântico Norte.
Digamos logo de saída: pobreza e miséria são questões sociais e não naturais
e fatais. Elas são produzidas pela forma como se organiza a sociedade. Hoje
temos consciência de que o social é parte do ecológico no seu sentido amplo
e verdadeiro. Ecologia tem a ver com as relações de tudo com tudo em todas
as dimensões. Tudo está interligado. Não há compartimentos fechados, o
ambiental de um lado, o social de outro etc. A ecologia social pretende
estudar as conexões que as sociedades estabelecem entre seus membros e as
instituições e todos eles para com a natureza envolvente.
Antes de mais nada, cumpre enfatizar:
- Não basta, em ecologia, o conservacionismo: conservar as espécies em
extinção, como se a ecologia se restringisse somente a um setor da natureza,
aquele biótico ameaçado. Hoje, todo o planeta deve ser conservado, porque
todo ele está ameaçado.
-Não basta o preservacionismo: preservar, por reservas ou parques naturais,
regiões onde se conserva o equilíbrio ambiental. Isso propicia apenas o
turismo ecológico e induziria a um comportamento reducionista; somente
nestas reservas o ser humano teria um comportamento de respeito e veneração,
em outros lugares obedeceria a lógica da devastação.
-Não basta o ambientalismo, como se a ecologia tivesse apenas a ver com
ambiente natural, com o verde, as águas e o ar. Esta perspectiva pode ser
até anti-humanista, segundo a qual, o ambiente é melhor sem o homem/mulher.
Estes seriam antes o satã da terra do que o anjo bom e protetor. Diz-se:
onde o ser humano anuncia sua presença, revela agressão e apropriação
egoísta dos bens da terra. Essa visão ambientalista é encontradiça em
muitos, no hemisfério norte. Depois de haverem dominado política e
economicamente o mundo, o querem, purificado, somente para si. A realidade é
que o ser humano faz parte do meio-ambiente. Ele é um ser da natureza, com
capacidade de modificar a natureza e a si mesmo e assim fazer cultura; ele
pode agir com a natureza expandindo-a, bem como contra a natureza,
agredindo-a. Devemos estar atentos a um ambientalismo político que esconde
por detrás de seus projetos, uma atitude de permanente violação ecológica.
Este ambientalismo político quer uma harmonia entre sociedade e ambiente.
Mas esta harmonia visa desenvolver técnicas para saquear o ambiente natural
com a menor alteração possível do habitat humano. Perdura nesta visão a
idéia de saquear a terra, de que o ser humano deve dominar a natureza; então
mais que uma harmonia permanente, se quer, na verdade, uma trégua, para a
natureza se refazer das chagas, para em seguida continuar a ser devastada. O
que importa, hoje, é ultrapassar o paradigma da modernidade, devastador e
energívoro e desenvolver uma nova aliança ser humano-natureza, aliança que
os faz a ambos aliados no equilíbrio, na conservação, no desenvolvimento e
na garantia de um destino e futuro comum.
- Não basta a ecologia humana, que se ocupa com as ações e reações do ser
humano universal, relacionado com o meio-ambiente. Ela é importante, porque
trabalha as categorias mentais (ecologia mental) que faz com que o ser
humano singular seja mais ou menos benevolente ou mais ou menos agressivo.
Mas é ainda uma visão idealista, pois o ser humano não vive no geral, mas
nas malhas de relações sociais. As próprias predisposições mentais e
psíquicas possuem uma característica eminentemente social. Por isso
precisamos de uma adequada ecologia social que saiba articular a justiça
social com a justiça ecológica. É dentro da ecologia social que os temas da
pobreza e da miséria devem ser discutidos. Pobreza e miséria são questões
eco-sociais que devem encontrar uma solução eco-social.
a) Que é a ecologia social
Há já reflexões maduras sobre a ecologia social. A começar pela contribuição
da enciclopédia francesa de ecologia de Charboneau Rhodes, das obras de
antropologia social de Edgar Morin. Importante é o aporte canadense de M.
Bookchin e do norueguês A. Naess. Mas ganhou força na A .Latina,
particularmente depois da Iª Conferência Internacional sobre meio
ambiente,organizada pelas Nações Unidas em 1972 em Estocolmo. Aí se
confrontaram as duas visões básicas, dos paises do Norte, preferentemente
ambientalista e dos paises do Sul, preferentemente político-social. Ai
surgiu uma vertente forte latino-americana de ecologia social, no Peru com
Carlos Herz e Eduardo Contreras e no Uruguai que encontrou em Eduardo
Gudynas um de seus melhores formuladores.
Ele define assim a ecologia social: "é o estudo dos sistemas humanos em
interação com seus sistemas ambientais" (Ecología social: la ruta
latinoamericana, CIPFE 1990). Os sistemas humanos abarcam os seres humanos
individuais, as sociedades e sistemas sociais. Os sistemas ambientais
comportam componentes naturais (selvas,desertos, cerrados) , civilizacionais
(cidades, fábricas) e humanos: homens, mulheres, crianças, etnias, classes
etc).
b) Quais as principais questões da ecologia social
Segundo os referidos autores, os postulados básicos ecologia social são os
seguintes:
l. O ser humano sempre interage intensamente com o ambiente. Nem o ser
humano nem o ambiente podem ser estudados separadamente. Há aspectos que
somente se compreendem a partir desta interação mútua, particularmente as
florestas secundárias,toda a gama de sementes (milho,trigo, arroz etc) e de
frutas que são resultado de milhares de anos de trabalho sobre sua genética.
2. Esta interação é dinâmica e se realiza no tempo. A história dos seres
humanos é inseparável da história de seu ambiente e de como eles inter-agem.
3. Cada sistema humano cria seu adequado ambiente. É diferente e possui
simbolizações singulares, por exemplo, o ambiente próprio habitado pelos
yanomamis, pelos seringueiros ou pelos latifundistas, pelos europeus ou
pelos indianos.
4. A ecologia social se interessa por tais questões como:
Através de que instrumentos os seres humanos agem sobre a natureza: com
tecnologia intensiva,como por exemplo com agrotóxicos ou com adubos
orgânicos? De que forma os seres humanos se apropriam dos recursos naturais,
de forma solidária, participativa ou elitista,com tecnologias não
socializadas? Como são eles distribuídos, de forma eqüitativa, consoante o
trabalho de cada um, atendendo as necessidades básicas de todos ou de forma
elitita e excludente? Uma distribuição desigual afeta de que maneira os
grupos humanos? Que tipo de discurso usa o poder para justificar a
concentração em poucas mãos, por isso, sua relação de desigualdade que tende
à dominação? Como reagem os movimentos sociais no confronto com o estado e
com o capital e para melhorar a qualidade de vida no trabalho, na cidade e
no campo?
Pertence à discussão da ecologia social, a miséria e a pobreza das
populações periféricas, a concentração de terras no campo e na cidade, as
técnicas agrícolas e agropecuárias, o crescimento populacional e o processo
de inchamento das cidades,o comércio internacional de alimentos e o controle
de patentes, a produção do buraco de ozônio, o efeito estufa, a dizimação
das florestas tropicais e a ameaça à floresta boreal, o envenanamento das
águas,dos solos,da atmosfera etc.
c) Uma ecologia integral
Para uma perspectiva integral, a sociedade e a cultura pertencem também ao
complexo ecológico. Ecologia é a relação que todos os seres, vivos e não
vivos, naturais e culturais têm entre si e com o seu meio-ambiente. Nesta
perspectiva também as questões econômicas, políticas,sociais, educacionais,
urbanísticas, agrícolas entram no campo de consideração da ecologia,como
ecologia social. A questão de base em ecologia é sempre esta: em que medida,
esta ou aquela ciência, atividade social, prática institucional ou pessoal
ajuda a manter ou a quebrar o equilíbrio de todas as coisas entre si, a
preservar ou destruir as condições de evolução/desenvolvime nto dos seres?
Nós somos parte, com tudo o que somos por natureza e fizemos por cultura, de
um imenso equilíbrio, do ecossistema. Diz um dos bons ecólogos sociais na
América Latina, Ingemar Edström, um sueco que vive há anos na Costa Rica:
"A ecologia chegou a ser uma crítica e até uma denúncia do funcionamento das
sociedades modernas. Entre as coisas que se tem denunciado temos a
superexploraçã o do hemisfério sul, quer dizer, o chamado terceiro mundo,
por parte dos paises comparativamente ricos do norte, do chamado primeiro
mundo. Neste sentido, tomar consciência sobre a problemática ecológica
global deve significar adquirir consciência da situação socio-econômica,
política e cultural de nossas sociedades,o que implica conhecer a situação
de exploração dos paises do sul pelos industrializados do norte" (Somos
parte de un gran equilibro,DEI, Costa Rica l985,12).
3. O atual sistema social é anti-ecológico e gerador de miséria
Dentro dos parâmetros da ecologia social devemos denunciar que o sistema
social dentro do qual vivemos - a ordem do capital,hoje mundialmente
integrado - é profundamente anti-ecológico.
Em todas as fases ele se baseou e se baseia na exploração das pessoas e da
natureza. No afã de produzir desenvolvimento material ilimitado,ele cria
desigualdades entre o capital e o trabalho. Disso se segue exploração dos
trabalhadores com toda a sequela de deteriorização da qualidade de vida.
Entre nós ele se implantou a partir da Conquista no século XVI com grande
virulência pelo genocídio, impondo aos que aqui viviam uma forma de
trabalhar e de se relacionar com a natureza que implicava o ecocídio,vale
dizer,a devastação de nossos ecosistemas. Nós fomos incorporados a uma
totalidade maior que é a economia capitalista. Nosso sistema capitalisa é de
economia de exportação dependente.
Implantou-se aqui a apropriação privada da terra, de suas riquezas e das
águas que são fonte de riqueza. Esta apropriação se operou de forma
profundamente desigual e irracional. Uma minoria possui as melhores terras,
muitas vezes,não cultivadas. As terras mais pobres foram deixadas para as
maiorias que para sobreviver tem que superexplorá- las e esgotar o solo,
terminando por desflorestar as matas e quebrando o equilíbrio natural. Os
negros antes escravizados, com a libertação jurídica, não foram compensados
em nada. Da casa grande foram jogados diretamente nas favelas. Tiveram que
ocupar os morros, desmatar, abrir valas para o saneamento ao ar livre e
assim viver sob ameaças de muitas doenças, de desabamentos e de mortes.
Todas estas manifestações significam outras agressões ao meio provocadas
socialmente.
Hoje a Conquista continua especialmente através da dívida externa que
comporta, em seu bojo, uma forte agressão às relações sociais, uma
devastação social dos pobres e a contaminação da biosfera pela tecnologia
suja que nos é imposta.
Mais e mais fica claro que a dívida externa tem fundamentalmente um
significado político. Economicamente os bancos já se asseguraram e se
protegeram contra o não-pagamento dela. Mesmo assim é mantida por sua
importância política como instrumento de controle e aumento da dependência a
partir dos centros de poder nos paises do Norte. Pela dívida o sistema
continua se impondo a si mesmo, sua lógica e sua perpetuação. Ele estimula
um desenvolvimento que privilegia os mega-projetos e as mono-culturas (soja
no Brasil, gado na A.Central, frutas no Chile): ele fornece créditos para
implementar tais projetos com financiamentos do Banco Mundial e do FMI; com
isso se cria o endividamento; o pagamento da dívida e de seus juros se faz
pela exportação; mas pela exportação,cujos preços são aviltados no mercado
mundial, não se consegue honrar toda a dívida; então se reduzem os
investimentos sociais para com a sobra compensar parte da dívida; esta
estratégia produz uma devastação social em termos das políticas publicas
concernentes a alimentação,saú de,criação de empregos e organização das
cidades; junto com esta taxa de perversidade social caminha o deficit
ambiental,pois os pobres ocupam áreas perigosas nas cidades,se lançam na
fronteira agrícola,destruindo, no esforço de sobreviver, florestas,produzind
o queimadas,poluindo os rios pelos garimpos ou por pesca e caça predatórias;
por causa da insolvência dos paises devedores, fazem-se novos empréstimos
para pagar os juros,com novos juros aumentados como condição para
financiamento de novos projetos ; e assim recomeça a ciranda da
dependência,do neo-colonialismo e da dominação.
Cancelar a dívida não resolveria a questão. Enquanto permanecer o modelo de
desenvolvimento imperante, saqueador dos homens e da natureza, voltado para
fora, produzindo o que os ricos querem que produzamos para eles consumirem,
e não atendendo o mercado interno, o círculo vicioso retornaria com as
mesmas conseqüências perversas.
O economista americano Kennet E.Baoulding chama a economia capitalista de
economia de cowboy: baseia-se na abundância aparentemente ilimitada de
recursos e de espaços livres para invadir e se estabelecer. É o
antropocentrismo desbragado.
A outra economia, para a qual devemos caminhar, a chama de economia da nave
espacial terra. Nesta nave, como em qualquer avião, a sobrevivência dos
passageiros depende do equilíbrio entre a capacidade de carga do aparelho e
as necessidades dos passageiros. Disso resulta que o ser humano deve se
acostumar à solidariedade, como virtude fundamental, encontrar o seu lugar
no sistema ecológico equilibrado, no sentido de poder produzir e reproduzir
a sua vida a vida dos demais seres vivos e ajudar a preservar o equilíbrio
natural. A terra, portanto, é um sistema fechado, equilibrado e não aberto
que permita qualquer tipo de aventura anti-ecológica.
Das reflexões feitas até aqui se depreende a interelação existente entre
sociedade e meio-ambiente, como um influencia positiva ou negativamente o
outro.
A proposta de Chico Mendes se tornou paradigmática. Propunha o
desenvolvimento extrativista que combinava o social com o ambiental. Ele
compreendeu que os povos da floresta (questão social) precisam da floresta
para sobreviver (questão ambiental). Ele se deu conta também dos dois tipos
de violência, violência ecológica contra o meio-ambiente e violência
social,violência contra os indígenas e seringueiros. Ambas obedecem a mesma
lógica, lógica de acumulação via dominação de pessoas e coisas.
Como se fará então o desenvolvimento e como se montará a sociedade dos povos
da floresta que rompa com esta lógica? Em primeiro lugar há de se respeitar,
apoiar e reforçar todo o conhecimento que aqueles povos da floresta
(indígenas e seringueiros) desenvolveram com milênios de história, seu
conhecimento da natureza,das árvores,das ervas,do solo,dos ventos,do ruído
da selva. E ao mesmo tempo, incorporar tecnologias novas que tragam mais
benefícios sociais com a salvaguarda do equilíbrio natural e social.
4. Uma ética sócio-ambiental
É neste contexto que emerge uma nova exigência, de uma ética que não apenas
se restrinja aos comportamentos dos seres humanos entre si, mas em sua
relação para com o meio-ambiente (ar, terra, água, animais, florestas, etc).
Devemos de saída, ir além uma compreensão da ética ambiental, recorrente nos
paises ricos do Norte. Segundo esta ética, devemos superar nosso
antropocentrismo, limitar a violência contra a natureza presente no
paradigma de desenvolvimento ilimitado, acolher a alteridade dos demais
seres da criação, desenvolver reverência face à totalidade da natureza.
Desta ética emerge, certamente, uma nova benevolência e até a recuperação de
um encantamento perdido pelo processo de tecnificação e secularização. Há
valores inestimáveis nesta ética ambiental.
Mas ela omite em sua reflexão um elo fundamental: o contexto social, com
suas contradições. Não há apenas o meio-ambiente. Nele, estão os seres
humanos socializados na forma de morar, de trabalhar, de distribuir os bens,
de agir e reagir com referência a este meio-ambiente; neste contexto social
há violências, há os condenados a viver em péssima qualidade de vida, com ar
poluído, com águas empestadas, morando sobre solos envenenados. Há aqui uma
nova agressão.
A ética não pode ser apenas ambiental, mas sócio-ambiental, pois, como
vimos, o ambiente vem marcado pelo social e o social pelo ambiental.
Discernimos, pois, dois tipos de injustiças: a injustiça sócio-econômico-
política, conseqüência da violência contra os trabalhadores, contra os
cidadãos e contra as classes subalternas. Esta injustiça atinge diretamente
as pessoas e as instituições sociais. Existe também a injustiça ambiental
que é a violência contra o meio-ambiente, contra o ar, contra a camada de
ozônio, contra as águas. Estas injustiças afetam indiretamente, mas de forma
perversa, a vida humana, produzindo doenças, desnutrição e morte. Não
somente para a biosfera, mas também de forma mais global sobre todo o
planeta.
Impõe-se, portanto, uma justiça social que se compagine com a justiça
ambiental.
Esta nova ética sócio-ambiental deve manter-se eqüidistante de duas
crispações que sempre quebram o equilíbrio ecológico: o naturismo e o
antropocentrismo. Pelo naturismo, se concebe a natureza como um sujeito
hipostaziado, em si, com suas leis imutáveis, intocáveis e sagradas; os
seres humanos devem se submeter a elas. O antropocentrismo diz o inverso, o
ser humano é senhor e rei da criação, pode interferir a seu bel prazer e não
deve sentir-se ligado e limitado por nada da natureza.
Estas visões são equivocadas, porque separam o que deve vir junto. Natureza
e ser humano são sempre interdependentes, um está dentro do outro, são
partes de um todo maior. Existe o ecosistema planetário; dentro dele, como
um dos seres singulares, está o ser humano, homem/mulher, está a sociedade
como conjunto de relações entre estes seres com suas instituições e
estruturas de significação.
Como parte e parcela do meio-ambiente, o ser humano possui a sua
singularidade. É da espécie dos seres vivos que se apresenta como um sujeito
moral. Quer dizer, um ser vivo complexíssimo, capaz de agir livremente, de
sopesar argumentos em favor e em contra, de tomar posição movido não apenas
por interesses mas também por solidariedade, por compaixão e amor. Pode
eventualmente pensar e agir a partir dos interesses do outro. Pode ainda por
solidariedade e amizade, sacrificar vantagens pessoais. Ele pode interferir
nos ritmos da natureza. Tudo isso o torna um ser responsável. É a
responsabilidade que o faz um ser ético. Pode se sentir o anjo bom da
natureza, seu guardião, herdeiro responsável pela herança que recebeu do
Criador. Como pode se comportar como satã da terra, destruir, quebrar
equilíbrios e devastar espécies de seres vivos e até seus semelhantes.
No processo histórico-cultural, o ser humano sempre interferiu no
meio-ambiente. Aplicou violências bem como aplicou seu engenho para melhorar
em seu benefício certas espécies (o tomate, a batatinha, o milho, etc). Os
incômodos ecológicos eram de pouca monta, à exceção talvez, dos maias que
devastaram a natureza a ponto de se autodestruirem como cultura. Mas nos
últimos quatro séculos com a montagem da máquina industrialista, a agressão
se fez maciça e sistemática, transformando tudo em recurso para a acumulação
e benefício, primeiro dos setores que detinham privadamente esses meios e em
seguida dos demais.
O resultado atual é desolador. O ser humano elaborou uma relação injusta e
humilhante para com a natureza. A terra não agüenta mais a máquina de morte
ou a voracidade capitalista. Impõe-se uma justiça ecológica.
A justiça ecológica significa: o ser humano tem uma dívida de justiça para
com a terra. A terra possui sua dignidade, sua alteridade, seus direitos;
ela existiu há milhões de anos antes que surgisse o ser humano. Ela tem
direito a continuar a existir em sua complexidade, com o seu patrimônio
genético, com seu bem comum, com o seu equilíbrio e com as possibilidades de
continuar a evoluir.
Um de seus filhos, o ser humano, se voltou contra ela. A justiça ecológica
se propõe uma nova atitude para com a terra, de benevolência e de mútua
pertença e ao mesmo tempo uma atitude de reparação das injustiças
praticadas. Se o projeto técnico-cientí fico desestruturou, ele pode hoje
redimir.
Essa injustiça ecológica (contra o meio-ambiente) se transformou também numa
injustiça social porque pela exaustão dos recursos, pela contaminação
atmosférica, enfim pela má qualidade de vida foi atingido o ser humano e a
inteira sociedade.
Esta nova ética sócio-ambiental só se implementa se surgir mais e mais uma
nova consciência planetária, a consciência da responsabilidade comum para
com o destino comum de todos os seres. Desta consciência vai se formando
lentamente uma nova cultura ecológica, o predomínio de um novo paradigma
mais reverente e integrador para com o meio-ambiente.
Um notável filósofo da ética da responsabilidade, Hans Jonas, formulou
assim, na linha de Kant, um novo imperativo ético para nossos dias:
"Comporta-te de tal maneira que os efeitos de tuas ações sejam compatíveis
com a permanência da natureza e da vida humana sobre a terra".
Teologicamente podemos falar de pecado ecológico. Quer dizer, daquelas
atitudes que comprometem o equilíbrio ecológico e a evolução e que provocam
conseqüências perversas para os seres vivos e para os humanos.
Esse pecado ecológico não se restringe apenas ao presente. Ele alcança o
futuro, pois podem ser feitas intervenções na natureza cujas conseqüências
se prolongam para além da geração atual, atingindo aqueles que ainda não
nasceram. O preceito bíblico: "Não matarás"( Ex 20, l3) abarca também o
biocídio e o ecocídio futuros. Não nos é permitido criar condições
ambientais e sociais que produzam futuramente doenças e mortes aos seres
vivos, humanos e não humanos. O pecado ecológico é um pecado social e
histórico.
Em razão destes efeitos se entende a solidariedade generacional; cumpre
sentirmo-nos solidários para com aqueles que ainda não vieram a este mundo.
Eles têm direito de viver, de não ficar doentes, de desfrutar da natureza,
de consumir águas limpas, respirar ar oxigenado, de contemplar as estrelas,
a lua e o sol, enfim a natureza conservada e integrada humanamente.
Conseqüência desta nova consciência ética é a assim chamada reconversão da
dívida externa dos paises devedores em função de políticas protetoras do
meio-ambiente natural e social. Segundo esta proposta, parte da dívida
externa seria cancelada, desde que os estados e as empresas se dispusessem a
proteger o meio-ambiente e a manter relações sociais mais simétricas e
justas. Mas não basta a reconversão da dívida feita aos estados e às grandes
empresas. Para ser socialmente justa, deveria incorporar como interlocutores
também os grandes movimentos sociais e seus representantes. Eles seriam
sujeitos de uma transformação econômica, política e social que atenderia
suas demandas históricas e que articulasse a justiça social com a justiça
ecológica de forma permanente.
Por outra parte, é farisaico e injusto que os paises ricos do Norte exijam
atenção ao meio-ambiente aos paises pobres do Sul, se não lhes dão condições
técnicas que facilitem a preservação ecológica. Antes pelo contrário: o que
assistimos é a transferência de tecnologias sujas para os paises pobres a
fim de que produzam para o mercado interno e internacional os produtos ainda
consumíveis, mas produzidos com uma taxa considerável de prejuízos
ecológicos.
A ecologia convencional surgiu desvinculada do contexto social. Igualmente
as teologias vigentes, também a Teologia da Libertação, foram elaboradas sem
inserir o contexto ambiental. Agora importa completar as perspectivas numa
visão mais completa e coerente: a lógica que leva a dominar classes, oprimir
povos e discriminar pessoas é a mesma que leva a explorar a natureza. É a
lógica que quer o progresso e o desenvolvimento ininterrupto e crescente,
como forma de criar condições para a felicidade humana. Mas esta forma de
querermos ser felizes está consumindo as bases que sustentam a felicidade
que é a própria natureza e o ser humano.
Para chegarmos à raiz de nossos males e também ao seu remédio, necessitamos
de uma nova cosmologia teológica, i.é, de uma reflexão que veja o planeta
como um grande sacramento de Deus, como o templo do Espírito, o lugar da
criatividade responsável do ser humano, a morada de todos os seres criados
no Amor. Ecologia etimologicamente tem a ver com morada. Cuidar dela,
repará-la e adaptá-la às eventuais novas ameaças, alargá-la para abrigar
novos seres culturais e naturais, eis a sua tarefa e também a sua missão.
O teólogo Leonardo Boff é autor de “Virtudes para um outro mundo possível” Vozes 2008.